Texto extraído do Blog: Cultura do Brincar - Luiz Carlos Garrocho
Os dois meninos estão com onze anos. A
moda é uma arma de brinquedo, que atira projéteis de plástico. O meu
filho tem uma dessas, pequena, tipo revólver. Sim, acabei comprando para
ele, de tanto insistir. Mas não só por isso: lembrei-me da alegria que
me tomou quando ganhei de presente os meus primeiros revólveres de
cowboi. E também das brincadeiras de assalto ao trem pagador em cima dos
murinhos de nossas casas, nos anos 60. E me lembrei ainda dessa
discussão meio estéril sobre a possibilidade ou não desses brinquedos
induzirem a violência. Por tudo isso, pensei: vamos acompanhar isso… Ele
queria uma arma enorme, mas aí eu achei que era muito exagero.
E então, ocorre que o amigo de meu filho
veio passar o fim de semana com a gente. E trouxe junto uma enorme arma
de brinquedo, uma imitação dessas que aparecem nos filmes e jogos
eletrônicos. Um terror de arma! Aliás, uma estupidez. Não pelos motivos
que estão por aí em circulação, mas simplesmente porque é um trambolho
que impede qualquer imaginação. Meu diagnóstico é simples e direto,
avesso ao cunho moralista: o brinquedo industrializado brinca sozinho!
Além disso, a arma de brinquedo era de um exagero só: impossível andar
normalmente nas ruas sem chamar a atenção. Mas a coisa não se encerra
aí: há toda uma cultura do tédio que é preciso driblar. E é disso que eu
pretendo falar.
Sim, comprei a tal pistola para o meu
filho porque não acredito nesse moralismo reinante. Se não houver uma
arma de brinquedo, serão as brincadeiras de matar e morrer. Quem nunca
brincou disso? Numa postagem eu discuti isso (Os jogos corporais e simbólicos da criança: entre a ficção e o real).
Muita gente se equivoca sobre a violência simbólica. Acreditam que ela
leva à violência real. Lembro-me também da ocasião em que tive de
intervir a favor do meu filho menor e de três colegas seus, quando uma
tutora de uma escola católica e tradicional proibiu os meninos de se
atracarem, depois da aula, numa brincadeira de lutas. Desnecessário
dizer que se trata de uma interação corporal maravilhosa. Aliás, eu
gravei uma sequência dessas lutas e mostrei para os meus alunos e
alunas: puro teatro físico!
Imaginação e enredo
Voltamos às tais armas, aos brinquedos
industrializados. De uma coisa eu desconfiava: os meninos não
suportariam muito tempo esse brinquedo tão exagerado. De fato, eles
ficaram dentro de casa atirando um no outro os tais dardos de plástico.
Mais uma vez, a imaginação torna-se cada vez menos despotencializada.
Quer dizer, menos enredada. Isso mesmo, falo de enredo e ficção. Pois
esses brinquedos tecnológicos e, diga-se de passagem, caríssimos, são
pobres na criação de um mundo ficcional. Como assim? Não são a mesma
coisa que os revólveres do nosso cowboi, celebrado com nostalgia na série Toy Story?
Estaria a diferença no brinquedo físico ou numa cultura onde não há
mais espaços para o brincar livre e espontâneo, característico da já
antiga cultura das ruas? O que acontecia não era, na verdade, uma
reapropriação, uma reinvenção antropofágica daquilo que a indústria
cultural já nos impunha?
Certamente, de tudo isso um pouco. Na
verdade, os nossos revólveres antigos tinham, no máximo, uma espoleta
que fazia um barulho quando puxávamos o gatilho. Mas não era isso o que
importava, pois afinal, brincávamos até com os dedos imitando
revólveres. Haviam as pistolas inspirados na ficção científica. Mesmo
assim, de um jeito ou de outro, a gente fabricava mundos – a definição
de poética, do grego, poiesis. Pois o que interessava a nós era o enredo e a imaginação. Ou seja: a ficção.
Essas novas armas são diferentes: em
primeiro lugar, elas são feitas para se atingir um alvo. Portanto, esses
brinquedos se inserem noutra classe: a das atiradeiras, espingardas de
chumbinho (essas últimas sim, são temerosas!). Há risco nisso? Acredito
que pode haver algum, pois são projéteis mais ou menos macios, mas não
deixam de ser projéteis. Porém, com certo cuidado (não se atirando de
muito perto e no rosto, não parece haver perigo).
Em segundo lugar, elas são feitas para o
consumo. Não estão muito à serviço do imaginar. As menores, me parecem
mais próximas dessa necessidade de se produzir jogos simbólicos, enredos
e ficções. Isso o meu filho me comprovou: brincaram, num dia permitido
na escola, com as suas pistolas, mas sem atirar dados. A imaginação
voltou a funcionar!
Vamos pra rua!
Assim que empunharam suas armas pelo
apartamento, os meninos logo apresentaram um alto nível de excitação
psíquica. E devo acrescentar: um baixo nível de envolvimento sensível. É
nisso que consiste, precisamente, minha avaliação. E não em julgamentos
moralistas. Sem poder de fato conjurar o exercício de tiro ao alvo,
pois estávamos em casa e na rua os tais dardos acabam sumindo. Esse tipo
de brinquedo necessita de amplos espaços. Os meninos na verdade nem
brincavam. Então, tomei uma decisão: peguei uma peteca e disse: vamos
pra rua!
A dificuldade foi imensa. Agora sim, o
alvo exigia habilidade real. E mais do que isso: convocava o corpo todo.
Pois, para jogar peteca temos que girar, subir, descer, pular. De fato,
aqui também não se enreda num enredo imaginativo. Mas se enreda numa
duração sensível. Depois de um bom tempo com esse jogo, propus que
caminhássemos. Fomos passear e curtir à tardinha. Havia alguém na rua?
Somente carros de jovens que passavam com os sons ligados no sábado à
tardinha.
A constatação: não há mais meninos e
meninas brincando nas ruas. Pelo menos na maior parte de nossas cidades.
E os pais, idem. Tente tirá-los da televisão ou da preguiça ou dos
referenciais de consumo! Sim, parece que é essa a única alternativa
terrível: os passeios nos centros de lazer e compra que são os shoppings
center. Nada contra tudo isso. Vez por outra, um cineminha, um lanche,
uma compra necessária etc. Porém, a pergunta que faço é esta: alguém
sabe o que é passear de tardinha com os meninos e as meninas, sem fazer
comprar qualquer coisa?
Depois da peteca, fizemos um pequeno
passeio e propus que eles subissem em árvores. Isso mesmo: subir em
árvores! Dei apoio, sustentação e know-how. Mais adiante, brincamos um
pouco de corrida. E então, voltamos para a casa. Hora de preparar o
jantar.
Senti falta de uma coisa: uma boa partida de xadrez.
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